sábado, 20 de novembro de 2010

Michael Jackson, o Mito e a Tragédia de nosso tempo

Num blog destinado à canção, é inevitável comentar, de alguma maneira, a morte de Michael Jackson, embora eu particularmente evite veicular por aqui notícias que já estão largamente alardeadas pela grande mídia. Em termos bem objetivos, não é necessário noticiar via blog o desaparecimento do maior ícone pop da história. Mas acredito que analisar, de alguma forma, o alcance que Michael Jackson obteve em vida pode ter alguma utilidade.
Comecemos fugindo aos clichês – berço da carreira de Michael Jackson, a trajetória dos Jackson 5, por exemplo, está largamente divulgada nos grandes sites. É inegável perceber, contudo, que Michael, aos cinco anos de idade, se destacava, chamava a atenção, pela voz, pela dança, pelo carisma:

Não foi à toa, portanto, que se transformou no maior mito da história pop. E a palavra mito, no caso de Michael Jackson, é a mais que adequada. Um mito é uma narrativa, trajetória de um herói, destinado à fama, entendida pelos clássicos como a capacidade de superar a lei da morte, que é o esquecimento.
Ora, Michael Jackson era talentoso desde a infância e parecia fadado (palavra, em língua portuguesa, também sintomática, porque fado quer dizer destino) ao sucesso. Foi, com efeito, o que ocorreu. Rumo à vida adulta – que, como veremos, talvez nunca tenha experimentado de fato – Michael Jackson tomou as rédeas de uma carreira solo estrondosa que todos conhecemos, mesmo que não gostemos das suas canções. Alcançar tal celebridade é meio de superar o esquecimento a que a morte nos destina. Mas, ao contrário do que parece, a obtenção dessa fama é um processo sofrido e – para retomar os clássicos, de novo – trágico.
Fazer sucesso e trabalhar aos cinco anos de idade é, para dizer o mínimo, um abuso. Criança, acredito eu, tem de brincar bastante, divertir-se, estar acompanhada por pais, parentes e professores que lhe agucem a criatividade e o gosto pela vida. Acontece que, muitas vezes, prodígios como Michael Jackson acabam por tirar suas famílias da penúria. Não faltam exemplos de jogadores de futebol adolescentes cuja renda sustenta pais e irmãos. Trata-se de um corolário da desigualdade social, que faz crianças tornarem-se adultas cada vez mais cedo. E o pior é que a lógica da sobrevivência faz todo o discurso dos direitos da criança virarem fumaça, e dá-lhe Sílvio Santos (no mais, outro mito) humilhando menininha em cadeia nacional.
A coisa se complica ainda mais quando percebemos que a trajetória do mito moderno está intrinsecamente associada à ascensão social. No caso de Michael Jackson, há ainda o agravante de ele ser negro, nos Estados Unidos. Está montado o enredo da vida real que talvez mais encante o público norte-americano, cujos valores estão espraiados pelo mundo afora: o mito moderno, o herói de nosso tempo, é aquele que supera, por meio do talento pessoal, do carisma, as dificuldades de classe e etnia, ascendendo socialmente e sendo aceito pelo público em geral. Some-se a essa receita o fato de o garoto ter começado a carreira com apenas cinco anos e de ter um pai violento. Aos olhos do público norte-americano, Michael Jackson é um grande vencedor porque superou duas das grandes máculas da “maior democracia do globo”: o preconceito da sociedade e a violência doméstica. Está montado o herói, um mito norte-americano de primeira grandeza.
Alguns leitores assíduos do blog hão de estar estranhando este texto. Mais de uma vez propus que analisássemos a obra dos artistas, não suas vidas. O ponto de vista que pretendo defender hoje é o seguinte: o mito Michael Jackson talvez seja ideal para percebermos o quão associada está a carreira do artista a elementos que nada têm que ver com seu talento. Em palavras bem simples: talvez grande parte do sucesso incomparável de Michael Jackson não esteja associado a seu talento artístico inegável, seja como dançarino, seja como criador de grandes hits, mas ao fato de ele encarnar uma versão do mito norte-americano de ascensão social e de superação dos preconceitos. Talvez as pessoas tenham depositado em Michael Jackson as esperanças e as ideologias que lhes habitam o imaginário. Ou pior: talvez Michael Jackson tenha caído como uma luva, há mais de vinte anos, para fazer parecer que a sociedade norte-americana tolerava minorias, exatamente em um de seus governos mais conservadores, o de Reagan. Lembremos, finalmente, que o primeiro presidente norte-americano oriundo das minorias acabou de ser eleito.
Mas todo mito, para ser mito de fato, tem de diferenciar-se dos humanos comuns. Talvez a morte seja, no caso do mito moderno, a melhor alternativa. Como tornar-se um mito – ser sobre-humano por natureza – e permanecer vivo, entre os humanos?  Na melhor das hipóteses, a celebridade dos nossos tempos faz besteira, é flagrada em alguma situação embaraçosa pelos papparazzi, retrata-se perante o público, ou não, e acaba por se aproximar do mundo dos mortais. E mais uma vez Michael Jackson foge à regra. O dinheiro que ganhou foi capaz de comprar-lhe uma “terra do nunca”, uma neverland  que pode ser interpretada basicamente de duas maneiras.
A primeira é a mais fácil: o rancho de Michael Jackson talvez seja uma tentativa de recuperar a infância perdida, toda ela consumida em obter a subsistência pessoal e familiar, além de cumprir o ritual para tornar-se um exemplo flagrante do self made man norte-americano. Viver na terra do nunca é uma forma de brincar o dia todo na montanha-russa, na roda-gigante, brinquedos de que boa parte das crianças desfrutou, menos Michael, confinado em estúdios e palcos. O fato de estar destinado ao sucesso tem preço: na infância, experimentou as responsabilidades da vida adulta; na maturidade, tentou ser criança de novo. E, de certa forma, os dois projetos acabam malogrados.
Vem dessa falência da vida pessoal a segunda interpretação que se pode dar ao rancho Neverland, certamente mais sombria: trata-se de um refúgio fora do tempo e do espaço, um espécie de limbo, talvez uma morte antecipada (que o dinheiro, o Deus moderno, pode pagar), instância que os mitos têm de habitar para permanecerem mitos. Em vida, Michael Jackson não pertence ao universo dos seres comuns. Recolhe-se, pois, a um mundo fora do mundo, espécie de morte em vida – no mais, uma repetição das situações paradoxais que viveu, como a vida adulta em plena infância.
Todo herói trágico tem de cumprir seu destino, a que não se pode escapar. Para Michael Jackson, o preço de ser a maior celebridade de todos os tempos apressou-lhe a morte, ainda que estivesse vivo. Conhecido em todos os cantos do mundo, restou-lhe o isolamento.
Mas nem Michael Jackson escapou aos fotógrafos insistentes, aos processos por molestar crianças sexualmente, aos casamentos que tinham toda pinta de terem sido arranjados para escamotear… o quê? Quem é Michael Jackson, de fato, talvez seja uma pergunta que o público faça a si diariamente. É pena, porque, como insisto sempre aqui no blog, essa é a pergunta menos importante a fazer. O culto ao mito Michael Jackson deixou, cada vez mais, de lado a obra de Michael Jackson – o que é lamentável, embora os trabalhos posteriores a Thriller jamais tenham superado esse álbum, em termos de qualidade.
Neverland talvez seja mesmo o espaço da infância perdida e da morte em vida. Mas o destino trágico do mito não para na tentativa malograda de recuperar os tempos de criança. A ascensão social e a superação do preconceito foram acompanhadas, na vida de Michael Jackson, por um processo nefasto de branqueamento e deformação. E não interessam as causas desse processo: o fato é que o mito foi assumindo uma forma assustadora, monstruosa, que parecia expressar sua degradação, motivada pelo culto a ele devotado. O processo era cruel: quanto mais Michael Jackson se mutilava – não encontro outra palavra – mais o público ia ao delírio, mais especulações eram feitas, mais os fotógrafos o perseguiam. Tratava-se de um processo de auto-sacrifício, em que o mito se entregava lentamente à aniquilação de si mesmo, à anulação completa da própria identidade, em nome da aparência, diretamente asociada ao culto à celebridade. Por trás daquela máscara de horror, de certa forma pressagiada na deformação pela qual Michael Jackson passava no clipe de “Thriller”…
Michael_Jackson_cadaver
por trás dessa máscara estava o vazio ou o mistério completo – a morte, portanto, única experiência que acabou lembrando ao público que Michael Jackson, no final de todas as contas, era humano. A morte iguala-nos a todos – e parece ter devolvido a humanidade a Michael Jackson, ele que já estava tão confundido com a própria máscara, exageradamente pálida, com o objeto de idolatria e desejo, objeto precioso, produto de consumo, na lógica da sociedade em que vivemos. Além disso, a morte conferiu-lhe definitivamente a distância necessária para que ganhasse a forma definitiva do mito.
Qual o preço de ser um mito moderno? Para responder, roubo as palavras ao Editor-Chefe do Showlivre, Rodrigo Carneiro, no blog Eu, ela o cão e o affair redivivo: “Ao que me parece, o tormento foi o parceiro mais constante da alma de Michael Jackson, artista completo. Deve encontrar a paz agora”.

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